Boletim Transmontano

Quando vim morar para o Nordeste Transmontano, tinha a convicção de que esta era seguramente uma das zonas mais bonitas de Portugal. Volvidos 6 anos, tenho agora a certeza: esta é MESMO a região mais fantástica do país.

O que me faz dizer isto?
Essencialmente, a variedade paisagística, com destaque para a alternância entre carvalhais, lameiros (prados, para quem não está acostumado à palavra), soutos, hortas, vinhas, rios, searas..., distribuídos por um relevo muito dinâmico - dos vales sombrios às montanhas de altitude moderada (mas a uma invejável “cota de neve”, durante o inverno), das escarpas abruptas do Douro às colinas da Terra Quente, passando pela planura da Meseta Ibérica, que também nos toca lá para as terras de Miranda.  

Como numa reunião de gnomos... cogumelos Amanita muscaria num souto bem perto de casa (a chuva emprestou o brilho).

Como numa reunião de gnomos... cogumelos Amanita muscaria num souto bem perto de casa (a chuva emprestou o brilho).

Com este cenário, é evidente que as estações do ano se fazem anunciar como em nenhuma outra zona do país. Para mim, que tenho uma amostra bem representativa de tudo isto mesmo em frente à janela, é como mudar de casa quatro vezes ao ano... para um sítio diferente mas igualmente belo... sem nunca me cansar!

E este outono foi mesmo impressionante!

Carvalho-negral à esquerda, castanheiro-bravo à direita... com a mistura a perpetuar-se por todo o bosque. 

Carvalho-negral à esquerda, castanheiro-bravo à direita... com a mistura a perpetuar-se por todo o bosque. 

O outono também se refletiu no rio Baceiro... literalmente.

O outono também se refletiu no rio Baceiro... literalmente.

Se num dia as cores eram fantásticas, no dia seguinte conseguiam ser ainda melhores. E depois vem a chuva, a emprestar um brilho luxuriante aos castanheiros, ou chegam nevoeiros, mergulhando os bosques num mistério de fábula, e logo depois uns derradeiros raios de sol pintando tudo a ouro, subitamente. E quando já não ousamos esperar mais nada, eis que aparece um arco-íris glorioso, daqueles completos e com cores perfeitamente definidas - “sem químicos!”, como afirmou um serralheiro que presenciou o espetáculo comigo, do telhado de minha casa (num original superlativo à sua maneira).

Apanha da castanha num belo domingo de chuva... pelo menos para o fotógrafo, que teve a luz difusa e o brilho com que andava a sonhar!

Apanha da castanha num belo domingo de chuva... pelo menos para o fotógrafo, que teve a luz difusa e o brilho com que andava a sonhar!

Mas não se trata apenas das diferentes espécies arbóreas (autóctones!, graças a Deus), da alternância geográfica ou do temperamento meteorológico; a beleza avassaladora da região vem também do conjunto de realidades e sensações que resultam dessa mesma pluralidade: como os corços que se veem de repente no meio do caminho; a raposa que reencontramos dias a fio a atravessar o mesmo lameiro; os javalis que se ouvem ali bem perto, entre as giestas, ou a brama rouca, crepuscular, dos veados; o perfume primaveril do feno recém-segado (cortado, para quem não é de cá) ou o intenso cheiro a terra durante as trovoadas estivais. Os cogumelos, as castanhas, a água fria e límpida do rio, a lontra que o atravessa, mesmo ali, num vislumbre de sorte. O mar de urzes em flor – brancas ou lilases – no alto de Montesinho, o amarelo das carquejas e das giestas... às vezes também brancas. E as borboletas, imensas, e o crocitar das gralhas enquanto vou cortando a lenha no quintal. E o cheiro a fumo de carvalho, que ao cair da noite sai da chaminé do senhor Fernando – e da alheira que de seguida põe na brasa (é outra forma olfativa de reconhecer o outono; já o verão, chega com as sardinhas assadas da dona Antonieta). Sim, o Nordeste Transmontano é tudo isto. Sim, o Nordeste Transmontano é muito mais.

As folhas não são de bétulas, mas os troncos sim. Uma bela combinação durante um Bétula Tour, a pedido de amigos de longa data.

As folhas não são de bétulas, mas os troncos sim. Uma bela combinação durante um Bétula Tour, a pedido de amigos de longa data.

Então e o litoral? Não tenho saudades do mar que me viu nascer?
Gosto muito do mar. Adoro o mar. E quando quero ir ao mar, vou ao mar (da Galiza, que gosto mais). Mas a verdade é que deixámos estragar o litoral (e muitas outras zonas do país, já agora). Conheço suficientemente Portugal para reconhecer que tem outras belas regiões, mas quando se trata de nomear a melhor, não tenho dúvidas: é Trás-os-Montes.

Estarei a exagerar?
Não!

Um passeio que demos com uma amiga, que veio de Lisboa a Bragança de avião só para ver in loco tudo aquilo que lhe havíamos contado.

Um passeio que demos com uma amiga, que veio de Lisboa a Bragança de avião só para ver in loco tudo aquilo que lhe havíamos contado.

Um cogumelo tombado num castinçal (é assim que se chama um bosque de castanheiros-bravos). 

Um cogumelo tombado num castinçal (é assim que se chama um bosque de castanheiros-bravos). 

Mas como não somos egoístas, eu e a Ana resolvemos começar a partilhar estes sítios com verdadeiros apreciadores. Isto não é para toda a gente... é mesmo para quem gosta de andar devagar e experimentar a fundo os cinco sentidos durante uma boa caminhada – numa manhã  bem fria, de chuva até. É aí que se vê o calibre dos autênticos gourmands.

Esta nossa delicatessen chama-se Bétula Tours.

O inverno está aí. Trás-os-Montes está aqui. O que esperam?   

E assim se pôs a serra da Nogueira da noite pr'ó dia. À porta de casa não tínhamos neve, mas foi só os miúdos saírem da escola e em 15 minutos estávamos aqui. Cores do Canadá e brancura do Alasca num só local perto de si? Nordeste Transmon…

E assim se pôs a serra da Nogueira da noite pr'ó dia. À porta de casa não tínhamos neve, mas foi só os miúdos saírem da escola e em 15 minutos estávamos aqui. Cores do Canadá e brancura do Alasca num só local perto de si? Nordeste Transmontano!

P.S.: a maioria destas imagens foi captada num espaço de apenas seis dias.

500 passos

Zero passos: ginjeira do meu quintal a anunciar o outono.

Zero passos: ginjeira do meu quintal a anunciar o outono.


Possivelmente, todos se lembram do jogo “Minha mãe, dá licença?”, a que se seguia a pergunta “Quantos passos?”.
Como a mãe aqui sou eu, dei-me licença para o jogar sozinha, de uma forma diferente. O desafio é fotografar tudo o que encontro num raio de 500 passos a partir do meu quintal. Porque, onde quer que eu vá, seja em direção ao miolo da aldeia ou ao topo dos montes, há sempre algo novo para registar: um novo ângulo, a mudança desencadeada pelo lento desenrolar das estações, a luz que tudo transforma, algo que foi acrescentado ou destruído, o que se mantém imutável através do tempo.

Quinhentos passos, contados com a exatidão possível do pedómetro, traçam o limite para o desafio ser maior: o de mostrar todo o universo possível neste pequeno espaço. Aos poucos, quero ir contando a história da aldeia, das pessoas, das hortas habitadas e das casas em ruínas, da paisagem em constante mutação.

É um trabalho que irá surgindo, ao ritmo do tempo e da vontade, mas que me fará olhar as coisas com outra perspectiva, ir ao encontro tanto das novidades como das pedras gastas e assim procurar o fio condutor que ajude a tricotar esta ideia.

Para já, ficam as imagens captadas nas últimas duas semanas, enquanto o outono se vai instalando, lentamente, passo a passo.

O mesmo freixo; várias perspetivas.

O mesmo freixo; várias perspetivas.

Não são resquícios de Halloween nem marcas de bruxaria; são as marcações dos limites da freguesia.

Não são resquícios de Halloween nem marcas de bruxaria; são as marcações dos limites da freguesia.

Onde tens andado, António?

Costumo dizer que a minha vida oscila entre a de um monge e a de um nómada. Quando tenho projetos fotográficos para executar, estou na fase nómada; quando regresso a casa para mergulhar nas catacumbas do processamento dos raw e na organização de toda a informação que acompanha as imagens, encontro-me na fase monge.

Uma das poucas coisas em comum com estas duas fases é o silêncio. Com a abundância de redes sociais e meios eletrónicos para divulgar as nossas vidas ao mundo, pode pensar-se que o mais natural seria eu dedicar uns bons minutos por dia a relatar os avanços e percalços do meu trabalho de fotógrafo - pelo menos durante a mais aventureira e interessante fase nómada. Mas não. Lamento, mas não consigo. Ao fim de um dia de trabalho com vários quilos de equipamento às costas, resta-me apenas tempo e forças para descarregar as imagens, fazer uma triagem preliminar, tomar um duche rápido, comer qualquer coisa e regressar ao hotel... onde finalmente caio como um bloco de 10 toneladas arrancado a uma pedreira. Agora, em plena fase monge, consegui encontrar uns momentos para dar conta do que tenho andado a fazer (embora nem sempre me apeteça, que a vida de casa também tem os seus desafios).

No topo de um silo (a que subi inúmeras vezes), com vista para um estranho navio "à vela"... em sintonia com as pás eólicas que está a carregar. 

No topo de um silo (a que subi inúmeras vezes), com vista para um estranho navio "à vela"... em sintonia com as pás eólicas que está a carregar. 

Seja como for, acho que vale a pena partilhar. Se há coisa boa na minha profissão, é o facto de ela me fazer atravessar universos muito distintos e excitantes, mostrando-me toda a complexidade deste mundo prodigioso. É como montar um enorme puzzle, que à medida que juntamos peças nos vai dando uma imagem cada vez mais percetível. E já que o leitor não me pode acompanhar nestas descobertas, pelo menos fica também a conhecer um pouco do que aprendi.
Aqui fica, então, o relatório dos últimos meses (em capítulos, para não maçar).

Viana do Castelo
Foi-me pedido um trabalho do porto de Viana - um retrato das suas várias valências: pesqueira, comercial/mercante, recreativa e industrial.

A sessão matinal da lota, com o encarregado do leilão em segundo plano e os compradores ao fundo.

A sessão matinal da lota, com o encarregado do leilão em segundo plano e os compradores ao fundo.

É um verdadeiro privilégio poder visitar uma lota e assistir do lado de dentro à azáfama da chegada do peixe e posterior arrematação. Percebemos de imediato a estrutura familiar que suporta este tipo de pesca costeira, com o mestre aos comandos do barco e toda uma tripulação feita de filhos, sobrinhos, genros e amigos dos genros, enquanto em terra a mulher coordena as operações de descarga com a filha, as sobrinhas as noras e as amigas das noras: as operações no mar e em terra estão assim claramente divididas por género, com uma eficácia tão evidente quanto a coesão do grupo.
Aprende-se imenso sobre os diferentes peixes e somos testemunhas da mudança brusca das espécies capturadas, simplesmente porque de um dia para o outro se foram uns cardumes e apareceram outros – questões de ventos, correntes ou até da transparência da água. Tudo isto nos muda também a perspetiva, quando depois de dias a fotografar a lota nos deparamos com um arroz de polvo ao jantar: conhecemos as histórias por trás daquele prato.

Noutra altura, pude visitar os estaleiros navais, circundando os colossos metálicos que se erguem das docas secas (é muito interessante perceber como há tanto navio abaixo da linha de água).

Um funcionário a trabalhar com um maçarico, numa foto onde senti a cara fustigada pelas "estrelinhas" incandescentes... é o que dá ver o mundo através de uma grande-angular extrema... nunca achamos que já estamos demasiado próximo. 

Um funcionário a trabalhar com um maçarico, numa foto onde senti a cara fustigada pelas "estrelinhas" incandescentes... é o que dá ver o mundo através de uma grande-angular extrema... nunca achamos que já estamos demasiado próximo. 

Aqui tudo é grande, enorme, gigante, pesado, maciço; há faíscas a voar e marteladas a ecoar por todo o lado. Há tinta e ferrugem, soldas e óleo. É impressionante. É avassalador. E se isto não for suficiente, basta desafiar a nortada e subir a uma das muitas gruas para nos darmos conta da nossa insignificância neste cenário de titãs. Foi o que fiz dezenas de vezes... para mal das minhas pernas.

A verdadeira dimensão das coisas.

A verdadeira dimensão das coisas.

Continuando na faceta industrial do porto de Viana, na margem sul do Lima há uma fábrica de cabos de amarração para plataformas petrolíferas - imagine-se! Provavelmente, coisas que nem os próprios vianenses conhecem. Nesta unidade produzem umas “corditas” com uns meros 20 ou 30 cm de diâmetro, e os “carrinhos de linhas” usados para os enrolar são tão grandes que precisam de um enorme camião de transportes especiais para levar apenas uma destas bisarmas ao cais comercial - tal como acontece com as turbinas eólicas, que exigem um aparato rodoviário e policial parecido com o da visita de um chefe de estado.  

Eis o tamanho dos "carrinhos de linhas" para enrolar cabos de amarração para plataformas petrolíferas. Para quem tiver dúvidas, na cabine daquele (já de si) grande empilhador cabe um homem.  

Eis o tamanho dos "carrinhos de linhas" para enrolar cabos de amarração para plataformas petrolíferas. Para quem tiver dúvidas, na cabine daquele (já de si) grande empilhador cabe um homem.  

Estar horas a fio ali no cais, junto aos navios de diferentes bandeiras (ou pavilhões, como agora posso dizer com toda a propriedade), a constatar informações sobre o peso das cargas e todas as histórias que elas trazem consigo, esmaga-nos a racionalidade. Uma simples bobine de papel, fabricada a poucos quilómetros deste sítio, pode pesar mais de 4 toneladas e chegar aos 8 km de extensão (um navio chega a carregar até 1300 destas unidades). A certa altura, não sei bem porquê, dei comigo a imaginar estender um destes rolos gigantes e a percorrer a “estrada” de papel resultante em bicicleta... só para poder ter uma ideia. É o tipo de coisas que me ocorre quando a luz é menos boa e pouso por momentos a câmara fotográfica. Ou então foi do Sol que apanhei na cabeça.

A simplicidade com que se levantam várias toneladas de uma vez! Dirão que me deslumbro com trivialidades... É verdade, sou um deslumbrado.

A simplicidade com que se levantam várias toneladas de uma vez! Dirão que me deslumbro com trivialidades... É verdade, sou um deslumbrado.

E agora tenho de recolher à minha cela monástica. No próximo post, falarei dos outros projetos em que estive a trabalhar recentemente. 

Bétula: plantámos uma no Nordeste Transmontano

Ser freelance é isto mesmo: não ficar quieto, adaptar-se, saber reinventar-se. Em boa verdade, a inconstância está para o freelance como a estepe está para o nómada mongol: é a essência do seu modo de vida.

Quando dei início à atividade de repórter, há quase 21 anos, fi-lo precisamente nessa qualidade, assumindo a imprevisibilidade inerente à ausência de um vínculo contratual com uma entidade empregadora/pagadora – um rendimento regular, portanto. Na altura, o mundo editorial crescia de forma tão vigorosa que até achámos boa ideia fazer isto a dois; e assim, (em boa hora, há que dizer) a Ana saltou para o mesmo barco... um barco sem GPS, sem sondas, sem radar - um barco onde apenas se podia navegar à vista.

Anos mais tarde, valeu-nos a experiência de centenas de reportagens entretanto publicadas para dar início a uma nova fase: a partilha de conhecimentos através da realização de workshops e passeios fotográficos. Vivia-se então o boom da fotografia digital, com uma procura inédita de experiência – e experiências – nesta área.

A mudança para Bragança, em 2010, manteve o registo formativo e lúdico dessas atividades, mas também abriu a porta a projetos fotográficos e editoriais de outra envergadura... e a vontade de fazer cada vez mais atividades ligadas à região.

E assim nasceram, mais recentemente, os passeios Saída à Medida: variados, personalizados e adaptados à sazonalidade vincada que aqui se faz sentir. Já não nos dirigimos apenas aos que gostam de fotografia, mas a todos aqueles que apreciam a vida ao ar livre e procuram uma experiência mais profunda e enriquecedora - “casais, famílias ou amigos, apaixonados pela natureza e pela vida selvagem, por uma caminhada na neve ou um simples mergulho em águas límpidas”,  tal como anunciamos nos postais promocionais, cujas faces podem ver ao longo deste post.

Achamos, por isso, que é altura de separar o que será sempre inseparável: o fotógrafo António Sá e a autora de textos Ana Pedrosa – que continuarão a existir como tal – das atividades mais vocacionadas para o turismo da natureza, como são as Saídas à Medida e outras que entretanto estamos a preparar. A partir de agora, estas últimas aparecerão sob o nome BÉTULA (marca registada no INPI), com uma identidade gráfica criada pelo reconhecido atelier R2 Design, dos nossos amigos Artur Rebelo e Lizá Ramalho.

Mas bétula é, antes de tudo, uma árvore.
Uma árvore esbelta, de silhueta simples, depurada, com a particularidade de apresentar um tronco branco com tracinhos escuros e uma roupagem distintamente bela em cada uma das estações do ano.

As bétulas têm uma aparência delicada mas são muito resistentes; são árvores de altitude, dão-se bem com a neve e o frio das montanhas, e gostam das latitudes setentrionais ainda acima do círculo polar ártico, até onde a tundra não as deixa mais seguir caminho – nem a qualquer outra árvore, de resto. As bétulas existem em Montalegre, em Montesinho, aqui ao lado em Sanábria, na Islândia e na Noruega, onde se chamam bjørk – que é também uma voz que gostamos desde o tempo dos Sugar Cubes. Elas povoam os sítios que mais nos inspiram - da nossa imaginação ao nosso jardim.  

BÉTULA simboliza o espírito que procuramos incutir na nossa própria vida e naquilo que fazemos: simplicidade, tenacidade, sazonalidade.

E agora que a plantámos, queremos partilhar o seu crescimento e multiplicação com todos aqueles que procuram as coisas boas da vida.

Porque melhor que uma bela árvore... é um bosque inteiro a perder de vista. 

Latvija

“Tem cuidado com o que desejas” - durante dias carreguei a frase, num misto de culpa e alegria. O marido, atento aos meus pedidos, tinha-me oferecido uma viagem. Ou antes, uma cilada. Porque isto de nos darem o mundo pode ser tão ilusório como nos prometerem a lua.
“Escolhe um sítio passar as férias da Páscoa, sozinha ou em família” – a prenda, sem embrulhos nem laços, foi lançada durante uma pausa para o café. Vinha acompanhada de um discurso sobre a minha necessidade de descansar, mas também de arejar, mudar de vistas.

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Parte da questão ficou resolvida na hora. Porque, se muitas vezes reclamo e sonho com dias de absoluta liberdade, não me passa pela cabeça fazer férias sem o resto da família; pelo contrário, quero viajar o mais possível com os meus filhos, enquanto não voam do ninho com outras companhias.

Mas a escolha do destino revelou-se tão difícil como estar perante um bufete de sobremesas. Não é que faltassem ideias, mas se umas encalhavam na distância e no orçamento, outras iam sendo abandonadas por razões várias. Houve uma altura em que, cansada de aventar e descartar hipóteses, pensei desistir. Já quase tinha deixado de pensar nisso, quando acordei uma manhã com uma palavra na cabeça: Riga.

“Porquê Riga?”, perguntou a minha filha, quando dias depois lhes comunicámos o próximo destino. “Porque não?”, respondi. A verdade é que, se há muito tinha tido vontade de conhecer os países bálticos, nunca me tinha debruçado sobre um em particular e pouco sabia, além de algumas leituras dispersas.

Mas quanto mais investigava sobre a Letónia, mais entusiasmada ficava. Além de ser um destino novo para todos, agradava-me a descrição de uma capital que mistura influências europeias com traços da cultura soviética, económica q.b., turística q.b.. Fiquei cheia de vontade de provar seiva de bétula, kvass (refrigerante feito de pão fermentado) e os queijos apetitosos que via nas fotografias. Fiz planos para visitar as igrejas ortodoxas, descansar em cafezinhos acolhedores, passear pelos quarteirões com casas em madeira, perder-me nas vielas medievais de Riga.

Depois de reservados os bilhetes, fiz figas para que a neve se mantivesse até finais de março, para que os miúdos pudessem experimentar snowboard ou esqui nórdico no Parque Nacional de Gauja. Entretanto, aprendi que, na Páscoa, os letões usam baloiços porque acreditam que isso os impede de serem picados pelos mosquitos durante o verão. Soube que 40% da área do país é constituída por floresta, vi imagens belíssimas do outono, desejei voltar lá ainda antes de ter partido.

Quebrei a promessa de ficarmos alojados bem no centro, depois de me apaixonar por um apartamento na margem esquerda do rio, no meio de ruas decadentes, casas de madeira em ruínas, junto a um mercado onde o tempo parece ter parado nos anos 70, senão antes.

O nosso refúgio. Decadente por fora...

O nosso refúgio. Decadente por fora...

... cheio de charme por dentro.

... cheio de charme por dentro.

Hoje, de regresso a casa, sei que os desejos se cumpriram. Tivemos seis dias sem chuva, mas a sorte de ver cair alguns flocos de neve. Visitámos igrejas, cafés e mercados. Fizemos snowboard e esqui, cruzámos bosques e rios de bicicleta. Provámos tudo de que tínhamos ouvido falar, adorámos o bairro onde ficámos, experimentámos toda a simpatia e frieza de que os letões são capazes.

Uma viagem perfeita? Claro que não, mas se assim fosse também não tinha graça nenhuma. Desta forma fica sempre a vontade de regressar.

 

 

Ode ao inverno

Todos os invernos regresso a Sanábria.
Ou talvez sejam os invernos de Sanábria que regressam a mim.

Há algo de profundamente belo naquelas montanhas. Como se a alma dos glaciares há milhares de anos desaparecidos perdurasse no vento gélido que varre as encostas - e em toda a neve que as transfigura da noite para o dia.
Atravessar a brancura com vento forte e o gelo a fustigar a cara é uma boa forma de sentirmos na pele este pedaço de norte, que nalguns dias parece querer imitar o ártico. Não se percebe onde acaba a montanha e começa o céu; é tudo um grande lençol indistinto, sem sombras nem escala, sem tempo nem distância. Uma redoma invisível, capaz de nos isolar do resto do mundo mesmo quando estamos acompanhados. Ou assim o sinto.

Mais abaixo, no fundo do vale, o lago.
É o testemunho líquido da antiga massa de gelo, mas com um temperamento mais inconstante, ditado pela ventisca, a corrente de ar lancinante que tem o raro dom de poder soprar na vertical... ou quase.
Em dias assim, as ondas encrespadas estalam repetidamente nos amieiros e no granito da praia, antes de serenarem na fluidez do Tera, que se escapa daqui num murmúrio distante, abafado pelos carvalhais.

Em ambas as margens acompanham-no quase sempre caminhos, talhados no solo por pescadores, pastores ou mais pesados tratores. E neles surgem ervas despenteadas, poças encharcadas e tufos de cristas douradas. 

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E depois disto, as aldeias: escassas, desertas, ligadas por estradas ainda mais escassas e mais desertas. E tanto pior quando os aguaceiros de inverno se abatem nestas terras... como em San Ciprián, no final do caminho. Ou em Escuredo, a meio caminho de lado nenhum. Os dois últimos habitantes abandonaram-na há igual número de anos. Ficou um gato, que guardei em fotos. 
Estrada fora, já do outro lado da montanha, Truchilas segue-lhe a sina. E mais adiante será Truchas, onde a gasolinera serve agora de bar, loja e centro social.

Tomo um solo, corto, bem quente. Quatro homens jogam às cartas.
Parte da estrada tinha neve. E está frio lá fora. Ninguém sabe se se passa para Ponferrada. O limpa-neves já não passa aí. E as ruas estão vazias. E a reta para Castrocontrigo também.
Parece um filme, algures entre a poesia de Malick e o insólito dos Coen.

É o Inverno em Sanábria.
Como se num sonho eu vagueasse.

Adenda: No início de fevereiro, levei um grupo de fotógrafos para conhecerem a região. O seu olhar sobre a região pode ser visto aqui.

Mandem-me passear

​Copenhaga, 21 de dezembro, 2014. No dia mais curto do ano, a escuridão e uma chuva sem tréguas empurrou-nos para dentro de portas mais cedo do que o habitual. Aproveitando para desfrutar a casa acolhedora (viva o airbnb!), e imbuídos de espírito nórdico, acendemos a salamandra, espalhámos velas pela sala e bolinhos pela mesa, enquanto aquecíamos leite com chocolate e glögg (vinho com especiarias).
Pela janela víamos luzes natalícias a iluminarem jardins e o interior das casas, e admirávamos o frenesim silencioso de bicicletas em hora de ponta.

Foi então, a meio da conversa, que pedi atenção aos meus filhos para ouvirem um conselho importante, aquele que deveriam reter para o resto da vida se só pudessem guardar um aviso feito por mim. Fez-se silêncio enquanto aguardavam a revelação.

“Sempre que me virem irritada, triste, esgotada... mandem-me passear.”
“Se eu gritar, mandem-me passear. Se perder a paciência... mandem-me passear. Se estiver num canto, calada e cansada... mandem-me passar. Arranjem-me um bilhete de avião, de autocarro, tirem-me de casa. Prometo que farei o mesmo com cada um de vocês. Hei de mandar-vos passear sempre que puder. Porque esse é o remédio mais eficaz que conheço."
É claro que nos minutos, horas e dias seguintes passei a ouvir com muita frequência, “Mãe... vai passear", com um sorriso cúmplice e malandro.

Brincadeiras à parte, a verdade é que tenho consciência de que somos todos mais felizes quando estamos fora de casa. Mais unidos como família, como pais, como irmãos. Conversamos mais, aprendemos mais uns sobre os outros, rimos mais, construímos pontes e cumplicidades, inventamos jogos, criamos memórias.

Mesmo antes das crianças nascerem foi sempre em viagem que tomámos as grandes decisões da nossa vida: mudar de emprego e de vida, ter filhos, fazer uma viagem longa, avançar com este ou aquele projeto. Fora de casa e das rotinas, a mente fica mais solta e as ideias mais límpidas. Por isso as nossas reuniões de trabalho são sempre ao ar livre; dantes a caminhar junto ao mar, agora a deambular pelos bosques.


No singular ou no plural, a cada dia sinto uma maior urgência de conjugar o verbo passear. Seja viajar para destinos distantes, sair para uma incursão de poucos dias ou descobrir um novo trilho na vizinhança.
Querem ver-me feliz? Mandem-me passear.

Quanto à prole, subscrevo na íntegra as palavras de José Luís Peixoto: “Aquilo que quero deixar aos meus filhos são viagens. Como outros acumulam imobiliário e bens, quero que sejam capazes de acumular momentos e lugares onde estivemos vivos e juntos. Essa será a fortuna que partilharemos”.

Grande Pássaro de Ferro Volta aos Territórios do Norte

Alguma vez sentiu que em muito pouco tempo e distância viajou a uma realidade completamente diferente?
O caso mais marcante que me aconteceu foi precisamente numa viagem de avião entre Lisboa e Bragança, no inverno de 2011 (a foto acima foi captada nesse mesmo voo). Em apenas 80 minutos passei dos 15ºC de uma soalheira Lisboa à aterragem pouco acima dos 0ºC, entre as montanhas nevadas do Nordeste Transmontano. Para quem gosta da adrenalina própria dos Great Outdoors - como chamam os britânicos a tudo que fica para norte da Muralha de Adriano - não há melhor elixir.
As nuances do nevoeiro a revelar ou a esconder uma paisagem misteriosa. Imensos carvalhais cobertos de líquenes. O murmurar distante de uma queda-de-água. Flocos gelados que nos beliscam a cara.

Estar vivo é isto.
Não podemos parar o tempo, nem fazê-lo andar mais devagar, mas estes momentos são os que mais se aproximam dessa ideia.
No momento em que escrevo estas linhas, estão 2ºC aqui em Bragança e uma chuva com gelo à mistura. Em Lisboa, a realidade é de 12ºC e céu pouco nublado. Se me meter no carro durante 15 minutos, até à serra da Nogueira, sei que estará a nevar... e o mesmo em Sanábria, com mais uns 45 minutos de viagem.

O silêncio... o bosque... a neve. O tempo parou.

O silêncio... o bosque... a neve. O tempo parou.

Não é o Alasca, nem a Noruega, mas nesta região também há lobos, ursos, veados, bosques, rios e montanhas. É o nosso próprio Grande Norte... igualmente belo e surpreendente, mas bem mais fácil de alcançar, agora também de avião desde o extremo sul de Portugal.

Em 2016 desejamos, por isso, mais descobertas, mais aventuras... mais tempo de qualidade.
Se pudermos ajudar no objetivo, tanto melhor.
Encontre as nossas propostas em AGENDA e TOURS neste mesmo site.
aqui ficam também os horários de voos.

Bom Ano!

Serra da Nogueira, ontem cerca das 12h00. Ambas imagens com Fuji X-10.

Serra da Nogueira, ontem cerca das 12h00. Ambas imagens com Fuji X-10.